sábado, 14 de novembro de 2015

Todos têm o direito de ler, escrever e participar.

Hoje é comemorado no Brasil o Dia Nacional da Alfabetização (14/11). A data tem o objetivo de conscientizar a população sobre a importância da implantação de melhores condições de ensino e aprendizagem no país. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o índice de analfabetismo no país ainda é muito elevado.

Convidamos você para refletir conosco sobre uma entrevista feita pelo Jornal Mundo Jovem à Sofia Cavedon Nunes (professora e Secretária de Educação do município de Porto Alegre, RS). publicada na edição 336, maio de 2003. 


Todos têm o direito de ler, escrever e participar.


É possível erradicar o analfabetismo no Brasil? Que método, que passos vamos dar para atingir este objetivo? Quem vai concretizar este projeto? São perguntas que todos os que estão preocupados com o futuro do nosso país estão fazendo. Convidamos a professora Sofia Cavedon Nunes, para nos ajudar, a partir de sua experiência, a apontar caminhos.

O que é ser analfabeto?
Eu penso que quem tem a dimensão do que é ser analfabeto é somente quem o é. Nós não conseguimos imaginar o que é olhar para uma parede, ver umas letras e não entender o que está escrito. Me parece que há uma falha do direito, uma dívida muito grande pelo fato de todos os cidadãos não poderem se apropriar do mundo escrito. Ser analfabeto, hoje, significa ter uma lacuna muito grande em relação à possibilidade da sua cidadania plena. Porque grande parte da nossa história, dos valores, do conhecimento construído pela humanidade, da própria possibilidade da fantasia, poder ler romances, biografias, estão registrados no símbolo escrito. Então, se usurpa uma parte significativa da potencialidade da cidadania de uma pessoa, por não estar alfabetizada. Alfabetização no sentido de realmente poder expressar e conhecer o mundo também através da língua escrita; não alfabetização no sentido de simplesmente decodificar uma letra que junta com a outra, o que ela significa, mas poder compreender o que está escrito, conseguir se expressar por escrito.

Como chamar os adultos e jovens para voltar a estudar?
Nós achamos que ao mobilizar as pessoas para voltar a estudar nós temos que levar em conta que o adulto está num outro patamar da vida, está tratando da sobrevivência, está diretamente no mundo do trabalho. Já construiu valores, saberes muito significativos, que até então resolveram o problema de sobrevivência dele. Então nós temos que considerar isto um grande saber e colocar a escrita a serviço disto, a serviço desta vida que ele leva e dos saberes que ele já construiu. E mostrar como a escrita pode ajudar a entender melhor, a se comunicar melhor nesta vida. É mais difícil para a pessoa adulta, porque os nossos analfabetos são, em sua maioria, oriundos da escola que fracassou, que inclusive colocou uma tarja neles, com um convencimento de que não eram capazes de aprender. Quantos destes adultos, quando crianças, foram convencidos, e também suas famílias, de que não davam para o estudo, que eram burros. Depois, num determinado momento o adulto analfabeto tem que perceber que tem relevância, que é importante que ele se mobilize para aprender. É exatamente como a criança pequena de classe popular que não tem o mundo escrito à sua volta, que não tem nada escrito em casa, o pai não lê, a mãe é analfabeta, e esta criança também tem dificuldade, não se mobiliza para ler, porque aquilo não tem nenhum sentido prático na vida dela. E com o adulto é a mesma coisa. Por isso, ao propor a alfabetização, fale da vida deles, parta do que eles querem fazer, dizer, contar, do que eles necessitam ler para a sua vida.

Qual é o número de analfabetos e quais as consequências do analfabetismo para o país?
Certamente o número de analfabetos é muito grande. No Centro-Oeste, nós temos 9,74%; no Nordeste, 24,57%; no Norte, 15,64%; no Sudeste, 7,49% e no Sul, 6,86% (IBGE, 2001, na faixa de 10 anos para cima, considerando que até 10 anos, em tese, estaria na escola e se alfabetizaria). O analfabetismo tem muito a ver com a questão da qualidade de vida. Nós, em Porto Alegre, começamos a educação de adultos em 1989. Em 1991 foi feito o primeiro censo que apontou 5,6% de analfabetos. A nossa cidade já tinha um indicador bastante bom. Hoje nós estamos em 3,3%. A condição econômica do Brasil sempre foi de subjugação. Quando o europeu veio para cá, fomos explorados. O investimento aqui foi muito nas elites; a escola nasceu para as elites. Nós, muito recentemente, na última década, estendemos a escola para todas as crianças. Então nós temos em primeiro lugar um país que de forma geral teve o seu sistema educacional muito restrito. Em seguida, ele foi se estendendo, mas uma escola muito inadequada à educação popular, que incorpora a lógica da fábrica, uma escola de conteúdo sem significado, em que todo mundo tem que aprender ao mesmo tempo, a avaliação é classificatória. Quanto mais um povo tem analfabetos, menos ele consegue exercer a sua cidadania. É óbvio que o processo de alfabetização é para além da decodificação do código escrito. Ele aproxima do mundo das ideias, da possibilidade do debate da vida.

É possível erradicar o analfabetismo no Brasil?
Primeiro, acho que não podemos trabalhar com esta ideia de erradicar, porque nós estamos lidando com pessoas. Nós vamos ter que propor às pessoas que queiram aprender algo, e não eliminar uma doença, ou um mal. É uma aprendizagem, uma possibilidade de cidadania, uma instrumentalização, que deveria ser oportunizada às pessoas. Um direito que, afinal, é um patrimônio da humanidade, construído por milhares e milhares de anos. Chegar a zerar o número de analfabetos, eu acho que é impossível, porque algumas pessoas vão dizer que para elas não tem sentido, não querem saber, e pessoas que já tiveram problemas na escola quando crianças não vão querer voltar a lidar com letras e números. Há pessoas com deficiência mental, e uma série de outras questões que vão impedir de chegar ao zero. O que nós temos que fazer é um grande movimento de acesso a este patrimônio da humanidade a todas as pessoas que quiserem. Temos que organizar grupos, quem sabe no sábado, domingo, ou horário alternativo; menos horas; alfabetizar a partir da sua necessidade, de acordo com sua origem e sua linguagem?

Já existiram outros programas de alfabetização, como o tão falado MOBRAL. Por que não se avançou nisto?
Um dos problemas destas políticas de alfabetização de adultos é a falta de continuidade. O governo começa e não dá continuidade. Outro problema é a metodologia. O MOBRAL e outros programas trabalhavam com a lógica de cartilha. Acho que Paulo Freire iluminou a educação de adultos. Dá para colocar um divisor: o antes e depois dos círculos de cultura que Paulo Freire trouxe para a alfabetização de adultos. Porque ele veio dizer que a educação não é neutra e que as pessoas precisavam ver sentido para estudar, e que só tinha significado a leitura do mundo, que precede a leitura da palavra. Não adianta querer ensinar, encucar palavras nas pessoas que não têm o menor sentido; as pessoas se mobilizam por questões que dizem algo para ela, para sua vida.

Quem integra os programas de alfabetização de adultos? Os jovens, sobretudo de Ensino Médio, podem colaborar?
Devem se envolver nos programas, mas não como um estágio ou um bico que vão fazer. Nós não acreditamos que seja possível alfabetizar adulto se a gente não entender qual é o processo, qual a metodologia e não se inserir, se importar com a sua vida e com a comunidade. Nós temos oferecido a partir do MOVA (Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos) espaço para educadores populares trabalharem com educação de adultos. A condição de serem educadores populares, de terem vínculo com a comunidade, tem se mostrado determinante. Em muitas turmas, por exemplo, quando vai trocar o educador, não querem continuar, porque aquele educador criou vínculo com eles. Eu recomendo que os jovens se envolvam em campanhas de alfabetização, a partir do clube de futebol que frequentam, da quadra da escola de samba em que estão envolvidos, ou grupo de hip hop. Nós temos muitos jovens, de 16, 17, 18 anos, analfabetos, que nós, com a linguagem do jovem, a partir de algum tipo de organização que interessa aos jovens, grafite, de música, capoeira, a partir do que o jovem gosta de fazer, a partir do que ele se envolve em sua comunidade, associação de bairro, organizar a entidade e dialogar com a faixa etária ou com os interesses das pessoas daquele grupo. Não dá para o jovem esperar que seja convocado o grupo, como fazia antigamente o MOBRAL, quando o grupo ia lá para o meio da Amazônia alfabetizar. Se eu não sei a cultura deles, não sei falar, não sei propor a partir da sua vida, é muito mais difícil dar certo.


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